Mano Ordai

Uruguaiana
Mano Ordai

A vida na fronteira mostra que limites não são tão difíceis de serem transpostos. A afirmação vale para questões geográficas, mas aplica-se também à criatividade, à concepção artística de uma obra com características cosmopolitas. Contudo, existir dentro das linhas impostas pela sociedade – delimitadas por quem detém o poder e faz as regras do jogo – não é tão simples. Estar condicionado a normas feitas para privilegiar uma minoria em detrimento da grande parcela populacional é capaz de aprisionar ações e pensamentos. Não é o caso de rapper Mano Ordai, de Uruguaiana, cidade do Rio Grande do Sul que faz limite com Paso de Los Libres (Argentina) e é muito próxima de Bella Unión (Uruguai). Com seu EP de estreia “Sobrevivendo”, o artista apresenta um testemundo de quem andou no limiar entre céu e inferno. São cinco composições que revelam um músico livre para juntar bases de rap com rock, samba e R&B versando sobre as agruras do passado que afetam nosso presente e nos deixam temerários para o futuro. 

Adepto da cultura das ruas há quase 40 anos, Ordai hoje se dedica ao som do hip-hop. Porém, tem seu trabalho atravessado pelas vivências que teve no skate, no hardcore/punk, na lida da cultura underground e na experiência de homem negro criado numa cidade interiorana do estado mais ao sul do país (onde casos de preconceito racial já foram manchete em todo o país). 

Luciano, nome de registro, conheceu o “carrinho” e o punk praticamente ao mesmo tempo, em meados dos anos 1980. Atualmente, ataca em diversas frentes culturais e de ativismo: integra o Movimento Negro Unificado (MNU), a Nação Hip-Hop Brasil e tem atuação no teatro, na fotografia e no cinema. Autointitulado soldado de Deus, é, ainda, professor de história e filosofia. Como músico, foi baterista e fundador da banda de hc 100 Neurônios, bem como tocou em outros projetos, como Sobreviventes da Fronteira. Recentemente, também fez parte do duo Rap Pampa Crew. Fosse pouco, é comerciante autônomo (vende cachorro-quente no centro de sua terra natal). 

No recente trampo solo, Ordai aposta numa espécie de boom bap pampeano. As letras resgatam a ancestralidade do músico e denunciam o racismo estrutural por meio de referências históricas da tradição gaúcha.

A faixa-título inicia o play jogando informações sobre criminalidade e o povo preto, ao estilo da abertura de ‘Capítulo 4, Versículo 3’, dos Racionais MCs. Indo por um caminho mais melódico para um tema espinhoso — a crítica às forças de segurança do estado —, Ordai opta por um som puxado para o R&B. Com sotaque forte nas primeiras palavras, a faixa traz a verdade do compositor em versos como “”Chuta, espanca, tapa no ouvido / mais uma mãe que chora, esse mundo está perdido”.

‘Berço do Samba’ chega na sequência e faz jus ao nome, numa pegada mais descontraída do que a abertura. O início, emulando o dial de um rádio tocando temas do estilo musical genuinamente brasileiro, precede um Ordai atacando de puxador e prestando homenagem à Sociedade Recreativa e Cultural Os Rouxinóis (tradicional escola de samba uruguaianense). Cantando trechos a plenos pulmões, o MC revisita sua própria formação cultural: “No centro da cidade / no meio dos boys, escola de preto, salve Os Rouxinóis”. 

‘Lanceiros’ aparece em seguida pesando, na sonoridade e na temática — os Lanceiros Negros, soldados de cor traídos e mortos na Guerra dos Farrapos. Já de cara, um riff de guitarra que lembra Cypress Hill na fase “Skull and Bones” e que logo faz par com o grave bem marcado de baixo em levada soul. Nos versos, Ordai dispara: “Negros lanceiros queriam liberdade / essa é nossa história ocultam a verdade”.

Outra que denuncia a que veio pelo nome é ‘Ruralismo’. Explorando situações de “trabalho análogo à escravidão” em sua região e na serra gaúcha, Ordai pega essas casos para abordar o assunto de maneira mais ampla. “Escravidão moderna está virando tradição / no campo e na cidade te exploram, meu irmão” lasca o rapper sob um boom bap nervoso com grave pancadão e scratchs pontuais. 

‘Navios Tumbeiros’ fecha o registro. O instrumental mistura linhas de guitarra reaggae/ska com rompantes de grave e uma espécie de naipe de metais (feito com teclado/synth) em pique latin style. “Essa é a história do povo brasileiro / essa é a verdade dos navios tumbeiros” subverte o músico, fazendo trocadilho com a alcunha pela qual as embarcações que transportavam escravos são conhecidas.

“Sobrevivendo” é o relato de alguém que segue vivo. Não apenas respirando, mas levando adiante sonho e ideal por meio de ritmo e poesia.

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Publicado em 04/02/2025