Confira a psicologia do autoenfrentamento com música em novo EP da Profane

Publicado em 01/10/2025 por Homero Pivotto Jr.
Confira a psicologia do autoenfrentamento com música em novo EP da Profane

O quarteto Profane (antiga Profane Mind) disponibilizou recentemente um EP intitulado “Fac-Símile”. A banda formada pelos primos Conrado C. Beltrão (guitarra e voz), Cristiano B. Costa (baixo e voz) e Luciano B. Costa (guitarra e voz), com a recente adição das batidas sempre eficientes de Luiz Argimon (Luigi Rokero), grosso modo, pratica um hardcore não ortodoxo que reverência a produção musical da última década do século passado.

Dado o conteúdo das letras e o fato de que três dos integrantes são ou passaram pela área da ciência que estuda o comportamento humano, o escriba achou conveniente cunhar o termo “psicologia do autoenfrentamento com arte”. Afinal, quem confronta seus próprios fantasmas com música (ou outra forma de expressão artística) afronta toda a gente doente a quem chamamos de sociedade (antes fosse o dos poetas mortos).

Segundo Cristiano, as influências para o trabalho são Os Replicantes, Ratos de Porão, Mukeka di Rato e DFC. Mas há ali recortes de quem cresceu sob os auspícios da escola Ramones sem esquecer que o mundo é repleto de boas referências a se tomar para si. Embora a prática de apropriação das fontes usada pelo quarteto vá além da música, passando por cinema e literatura, citemos Titãs (circa fim dos 1980/começo dos 1990) e Dead Kennedys como alguns modelos que parecem terem servido de inspiração.

O próprio título do registro, “Fac-Símile” (que indica reprodução de algo já existente), sugere a ideia de que “tudo se copia, nada se cria”.

“No início, estávamos trabalhando com a ideia de uma documenta fantasma (esse era o título original do EP, a partir do qual fomos escrevendo as letras). O fantasma seria uma série limitada (as 6 músicas) de traumas contemporâneos, que são os temas das letras. No final, quando as músicas já estavam prontas, acabamos mudando o nome do EP para “Fac-Símile”, porque nos pareceu mais honesto. Todas as músicas têm ligação direta com músicas que nos inspiraram e ainda nos inspiram de alguma forma, e que são responsáveis por a gente estar fazendo música ainda hoje”, pontua Cristiano, que também assina a montagem da capa.

Segundo o músico e também professor universitário, tudo é uma forma de cópia, ou uma tentativa de fazer igual (no sentido de tentar conseguir o mesmo efeito que sentimos ouvindo as músicas originais).

“Como não é possível reproduzir, a singularidade daquilo que a gente compõe acaba sendo produzida pelo desvio, pela imperfeição, pelo deslocamento espaço-temporal. Não há nenhuma pretensão de originalidade, e sim a vontade seguir uma tradição, repetir certos gestos que nos inspiram e constituem musicalmente o que somos, arremata o baixista.

Abaixo, um faixa a faixa (d)escrito por Cristiano.

“Jesus Cristo é meu coach” é sobre fundamentalismo religioso e a nova onda de cultura coach dentro das igrejas. A inspiração é bastante óbvia, basta andar nas ruas e circular pelas redes para identificar o fenômeno. Diante disso, a música não faz uma crítica à figura de Jesus, e sim aos abusos que se costuma realizar em seu nome. DFC e Ratos de Porão são duas referências diretas aí, sobretudo para a letra. O Luciano tentou uma abordagem Jello Biafra no vocal, e o final tem uma atmosfera meio Where Eagles Dare, do Misfits, que a gente gosta bastante.

“A parte do fogo” é sobre as queimadas de setembro de 2024, mas acaba evocando também as cheias de maio de 2024 aqui no RS. Na parte final, a gente pergunta se a chuva que afoga a cidade seria a baba do diabo ou o choro de deus. Há essa relação entre a chuva preta e a fuligem das queimadas e a chuva que afundou o estado meses antes. Para nós, ambas podem ser lidas pelo signo do realismo capitalista (Mark Fisher), e por isso funcionam também como indicadores de um lento cancelamento do futuro. No final, acabamos imaginando essa figura solitária que pode ser qualquer pessoa que se proponha a pensar criticamente a respeito do contemporâneo, lidando com os restos de cada tragédia. Musicalmente, Replicantes e Dead Kennedys são as referências principais.

“Criança Viada” foi pensada como uma coisa entre Stiff Little Fingers e Ramones, embora a frase de guitarra que atravessa toda a música leve ela para outros lugares. A letra é inspirada na exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, cancelada pelo Santander Cultural, em Poa, devido aos protestos nas redes sociais (liderados sobretudo pelo MBL, com o próprio prefeito de Poa na época, o Marchezan, dizendo que a exposição fazia apologia à zoofilia e pedofilia). Acabamos utilizando as obras Criança viada travesti da lambada e Criança viada deusa das águas, da Bia Leite,para abordar esse paradoxo encarnado por uma sociedade que comete barbaridades diversas no dia a dia mas tem medo da criança viada.

“A baleia” é inspirada no texto do Samuel Hunter, que virou filme dirigido pelo Darren Aronofsky (com o Brendan Fraser no papel do pai que tenta se reconectar com a filha adolescente). Em especial, a cena final do filme pauta toda a letra. Há muitos fantasmas ali: luto, solidão, compulsão alimentar, relações familiares, questões de gênero e sexualidade. A música começou com uma inspiração Sonic Youth, mas acabou ficando com um ar meio tarantinesco. Quem gosta das coisas que os Titãs faziam nos primeiros discos talvez saque a inspiração no arranjo das vozes. O final da música tem participação do Samuel Kircher (Ofício Infame/Esquife/Heavy Metal Kid) na guitarra.

“A sombra” é uma história de luto e fantasma. Há uma frase famosa do Freud a respeito da melancolia, condição que ele define como a sombra do objeto perdido caindo sobre o enlutado. A partir dessa imagem, a letra mapeia essa sombra que está sempre à espreita, para lá e para cá, uma sombra que assombra o mundo de alguém.

“O pior lugar do mundo” fala sobre violência familiar. Talvez seja a música mais densa do EP. A estrutura lembra a utilizada pelos Replicantes em Mentira. As cenas de abuso vão sendo acrescentadas uma a uma, a cada retorno. Há também uma referência àquela letra bonita do Jota Quest, que diz que o melhor lugar do mundo é dentro de um abraço. A música fala de quando esse abraço pode ser o pior lugar do mundo, nas vezes em que o agente da violência é quem deveria cuidar. De certo modo, ela conversa bastante com a Criança Viada, é uma outra forma de olhar a desordem das famílias.

As composições foram gravadas, mixadas e masterizadas por Davi Pacote no Hill Valley Studio (2024/2025).